domingo, 27 de fevereiro de 2011

Máquina zero no cabeludo

Aqueles ervados já andavam há muito a pedir corte e eu andava mortinho de lhe ser útil, de fazer o gosto ao dedo, como que a querer fazer na natureza algo que sempre desejei fazer num humano e até hoje não consegui: cortar um cabelo à escovinha, primeiro com tesoura e depois com pente zero, especialmente se a cabeça fosse daquelas forradas  a pelo longo, daqueles que obrigam ao safanão rodopiante da cabeça com paragem brusca para retirar o empecilho dos olhos ou, mais para o lado da nuca, o que passa bem abaixo da gola do casaco e ainda encaracola na ponta em forma de rabo de cão. Como não alimento a esperança de alguém se voluntariar para me matar este desejo preverso, até porque os cabeludos já não abundam e não espero vir a ser torcionário numa qualquer ditadura local ou longínqua, dirigi toda a minha frustração para os relvados do Paço:  no sábado o sr. Armindo da Curta Paragem lá me veio apresentar a máquina de cortar relva que no fim de semana anterior havíamos negociado (sim , não é lapso, a empresa chama-se mesmo Curta Paragem, dedica-se a tudo quanto tenha motor de explosão, está situada numa aldeia a poucos kms do Paço, pratica bons preços e, vantagem maior, dá boa e rápida assistência, mesmo ao fim de semana); uma instrução rápida, que se fazia tarde para partir para Vidago para o baptismo do Miguelito, duas voltas de prática na relva, os sapatos novos aspergidos por relva super fragmentada e a máquina lá ficou à espera pelo dia de hoje, para a minha grande estreia, com muita satisfação, como cortador de relva (cabelo em cabeça humana, diz a minha imaginação). Finalmente amanheceu o domingo,  e que domingo: sol, muito sol, nuvens só os traços de avião que logo cedo andavam num corre corre, uns direitos a oeste outros virados a sul, todos com ar de ir passar para além do oceano que lhes corre por baixo, pouca humidade na relva, mas ainda assim a suficiente para ter de esperar  mais um pouco que o secador solar a torne mais leve e sedosa. Às 10 horas, a máquina no sítio, abertura da torneira da gasolina executada,  borboleta de entrada do ar  fechada, um puxão no cordão de arranque e nada; outro e mais outro esforço bruto e a nega continuava: o Honda resfolgava mas não explodia; afinal era a relva alta que prendia a lança cortadora e impedia o motor de atingir as rotações necessárias para o arranque. E num instante aí estávamos nós homem e máquina a interagir como se toda a vida vivêssemos um com o outro. O som do motor é típico dos motociclos Honda a 4 tempos, o ruído é suave e a tracção às rodas traseiras até nos leva a reboque. Mas o primeiro obstáculo que nos aparece pela frente, uma camélia, digo uma orelha na cabeça,  mostra que afinal a máquina manda mais do que o operador, e o choque foi violento: uma roda dianteira abraçou o frágil tronco do jovem arbusto, porque a tracção continuava a puxar enquanto o maquinista não desembraiasse. Corrigido o erro e tomada a lição, a coisa correu bem  e durante quase duas horas o exercício de braços e pernas  foi agradável e o resultado final foi uma “escovinha” quase perfeita, sem fazer sangue. Já estou a imaginar a luta interna para o próximo corte, mas eu venderei a derrota cara, porque tenho planos de ser sempre o maquinista de serviço. Tenho até planos de comprar um vestuário a condizer: umas calças de alças à jardineiro, uma botas de biqueira metálica, uns óculos de segurança e uma luvas de condução. Aberto, digo escancarado,  o apetite com tão saudável tarefa lá fomos ao Chave do Cruzeiro atacar uns nacos de vitela e uma vitela assada à moda de Lafões, que o Zarator da noite se encarregará de anular nos seus efeitos maléficos.
Camélia jovem bebendo sol

E o sol continuou a inundar uma tarde que era bom triplicasse de duração, e me permitisse estar ainda no Paço, em vez de ir aqui a escrever sentado no lugar 66 da carruagem dois do Alfa Pendular em direcção a Lisboa, são já quase 11 da noite.